12.1.11

"Remember remember the fifth of November...

 ...
The gunpowder, treason and plot;
I know of no reason, why the gunpowder treason
Should ever be forgot."

Este post tem dedicatória : obrigado por me apresentares este magnífico exemplar de 'novela gráfica' . Contempla agora o monstro nerdico que estás a ajudar a construir.

Acabei há uns dias de ler o V for Vendetta. Claro que me lembrei da adaptação cinematográfica que foi feita há uns anos, e, embora já a tivesse visto, tive curiosidade de perceber a maneira como foi adaptada a história e voltei a ver. Disseram-me um dia que até estava bastante fiel...digo eu agora que não está. Aliás, até está bastante distorcida.

A história toma lugar em Inglaterra, num mundo pós-terceira guerra mundial, em que pelo menos a Europa e África desapareceram e onde prevalece um sistema fascista, imposto com o objectivo de retomar a ordem após o caos gerado pela guerra.

V, cuja identidade é desconhecida, é apresentado como um terrorista anarca (aliás, a sua 'marca' é uma referência indiscutível ao símbolo do anarquismo) cujas intenções e modo operativo ficaremos a conhecer ao longo da história.



 E a estrutura principal vai andar à volta disto : quem é V, e quais são as suas intenções. 
Chegaremos mais tarde à conclusão de que V é uma ideia e as suas intenções são instalar um sistema anárquico na verdadeira percepção da ideia, ou seja, ausência de governo, líderes, coerção,... e não ausência de ordem (não sendo 'ausência de ordem' e 'caos' sinónimos de anarquia, como a banalização e alteração do significado do termo pelos meios de comunicação etc. nos fez acreditar. Anarquia significará a 'verdadeira ordem', sendo esta uma ordem voluntária). E para V, a destruição, o caos, farão parte do processo para atingir essa nova ordem, ...uma ideia a raiar um certo niilismo positivo, muito 'destruição também é criação'.



Partindo de uma referência histórica (o 5 de Novembro, a 'Conspiração da Pólvora', na qual se pretendia assassinar o rei protestante Jaime I da Inglaterra e todos os membros do parlamento durante uma sessão em 1605 - explodindo o mesmo) que é explicada no filme , embora na BD não se dêem a esse trabalho, V vai desencadear uma estrutura de acontecimentos que culminarão na eliminação do poder e das suas representações em Inglaterra. 

E aqui o argumento do filme falha redondamente na interpretação da estrutura simbólica que suporta as ações de V. Vejamos : 


 A primeira coisa que V explode no livro é o parlamento, no dia 5 de Novembro de 1997, no mesmo dia em que, 392 anos antes, tentaram fazer o mesmo mas sem sucesso.


No filme ele explode primeiro o 'Old Bailey', o tribunal. A destruição do parlamento passa a ser o último objectivo, o fim do filme. Aliás, no filme são apresentadas apenas estas duas 'explosões'.


No entanto, a estrutura simbólica da narrativa (que se perde no filme) assenta na questão da tripartição dos poderes do Estado - legislativo (parlamento), judicial (tribunal) e executivo (governo). No livro, V explode primeiro o parlamento, de seguida explode o tribunal e o objectivo último será a destruição do 'governo', Downing Street, a 'boca' ,a morada do líder fascista, : Adam Susan.


Outra grande falha do filme é a importância e a construção da personagem 'Evey'. No livro, Evey é uma miúda de 16 anos, cuja mãe morreu duma doença qualquer e o pai foi levado pelo governo quando ela era criança, que não tem onde cair morta e que vê como última alternativa a prostituição. Entretanto é salva da morte certa por V, tornando-se uma espécie de protegida dele. 


No filme, Evey (Natalie Portman) é uma jovem adulta, com alguma educação, filha de pais activistas  e tem um emprego humilde na estação de televisão do Estado.





No livro, V acolhe Evey e educa-a, e através de métodos um pouco discutíveis e violentos  (física e psicologicamente) torna-a numa pessoa culta e capaz de ser crítica em relação à sua própria existência e da sociedade (no meio há a questão da 'libertação' a da 'tranformação' que será transversal a três personagens chave - o próprio V, Evey, e o inspector Finch, mas não importa agora ir por ai). Percebemos no fim que V está a treinar a sua substituta - V não é um homem de carne e osso, é uma ideia, lembram-se?...não importa quem usa a máscara mas os ideais representados por ela.



...e essa questão da prepetuação da mensagem e da ideia é ainda vincada numa das páginas finais, quando vemos Evey, depois assumir o papel de V, recrutar um novo protegido, retomando o ciclo que o V original começou.


No filme, para além da convivência de Evey e V ser bastante reduzida, e embora a questão da libertação e da trasformação seja enfatizada, o papel dela é estanque. Não há a questão da existência de uma figura que represente a mensagem e a sua prepetuação. E, claro está, botam um bocado de romance para apimentar a coisa e há ainda uma altura em que colocam V numa posição de escolha : ficar com Evey e esquecer os seus ideais ou continuar o plano delineado.



 E finalmente (porque embora haja outras diferenças mais secundárias, prefiro deixá-las para outro dia) há a questão de duas personagens essencias : o Lider e o inspector Finch.

A caracterização psicológica do Líder no livro é indiscutivelmente superior à adaptação. O Líder é um homem. Um homem com ideias muito definidas quanto à sociedade e à maneira como ela deverá funcionar e acredita que está a fazer o melhor pelo povo. 

 

No filme o Líder - Chanceler, como lhe chamam, é uma figura autoritária num ecrã. Não percebemos sequer que haja um 'homem' nem as suas intenções. 


E é essa displicência com que (não) constroem a personagem do Líder no filme que leva à maneira estúpida, (e desprovida do sentido maior que lhe é dado no livro) de ele morrer.
Sim, claro que ele morre. No filme às mãos de um ganacioso que lhe quer o lugar, no livro às mãos de uma mulher, uma mulher cuja história vai sendo contada ao longo do livro, que vê a sua vida e esperanças destruídas, uma vítima do sistema, uma mulher como outra qualquer mas que lhe cabe aqui o papel de representante de todas as outras/outros. 

  

E ainda há Mr. Finch. E não é por acaso que a última página do livro lhe é dedicada. Mr. Finch é o inspector encarregue do caso do 'terrorista de nome de código V'. O único que se dará realmente ao trabalho de perceber V, a sua mente e as suas intenções. No meio da investigação também ele passa por um processo de 'libertação' e é-lhe dado o privilégio de não só conhecer V, mas de o matar. No filme, V é morto numa sequência cheia de polícias e balas e efeitos especiais à la Hollywood.

E por último, dois pormenores deliciosos do livro que não poderia deixar passar :


-uma referência a Mr. Reed.

-a questão de a certa altura se ouvir a 5a sinfonia de Beethoven, que começa : tu tu tu tuuu, o que em código morse será o equivalente à letra 'V' (...-).

Lindo.


5 comentários:

Ricardo N. Leal disse...

É também curioso que John Hurt interprete uma figura similar ao Big Brother do 1984 de Michael Radford :)

mariana disse...

Nunca vi o 1984, adorei o livro. Aliás, acho que é por ter adorado o livro que nunca vi o filme...
É engraçado falares no 1984, porque pensei que seria um bom toque fazerem alguma referência a isso no V for Vendetta, e na única altura em que isso se proporciona (o ano de início da 'terceira guerra mundial') os gajos esquivam-se e começam-na em 1986. Bolas!

Mas, como disse, a figura do Líder foi muito mal interpretada, e reparei agora que no filme até lhe mudam o nome!

Babe disse...

Sensacional resenha, de matar de inveja qualquer nerd...
Gibi (rere) sensacional, li há mais de 20 anos (catso!) e ainda o tenho vívido na memória.
Que bom que gostou.
Agora... esqueça qualquer adaptação de quadrinhos para o cinema, a menos que jamais pretenda ler a revista.
Tente agora "From Hell".
Bjs!

mariana disse...

'resenha' 'gibi' 'catso!' 'quadrinhos'

fale português, homem! ;)

O Puto disse...

Acho estranho e lamentável que muitas adaptações destas graphic novels para o cinema sejam displicentes. Como o próprio nome indica, são gráficas, como os storyboards. Sendo assim, há que culpar os realizadores.